Tradições

4. Apanha da azeitona / confecção do azeite


O soito era uma terra com muita azeitona, que era apanhada durante várias semanas, entre Novembro e Janeiro, sendo acondicionada nas lojas das habitações e nalguns casos em tulhas junto ao lagar e conservada com sal.

Já mais próximo de fazer o azeite a azeitona era transportada às costas ou em carros de bois (na aldeia havia entre 1 e 2 juntas de bois) para o lagar da “ponte de ceiroco”, na Ribeira de Carrimá, que servia a aldeia do Soito, Carrimá, Boiças e Vale Pardieiro.

Cada proprietário marcava o seu dia ou dias para fazer o azeite, dependendo da quantidade de azeitona que possuía. No dia de fazer o azeite teria de fornecer lenha para a fornalha do lagar e comida para os lagareiros que, na maioria das vezes era feita na fornalha do lagar, sendo daqui originário o famoso prato de bacalhau à lagareiro, o qual, tal como as batatas “a murro”, era assado na brasa e temperado com o azeite acabado de fazer.

Os lagareiros, mestre e moço, trabalhavam dia e noite de forma contínua (com alguns intervalos de descanso enquanto o moinho moía as azeitonas e a prensa ia espremendo as que tinham sido moídas anteriormente), sendo na maioria das vezes acompanhados durante a noite pelos donos da azeitona, que também ali pernoitavam.

Após o processo de moagem das azeitonas, a massa resultante era colocada em “ceiras” que eram depositadas umas sobre as outras na zona adequada à prensagem. Após este processo procedia-se ao accionamento da prensa, rodando um fuso com uma pedra de grandes dimensões acoplada na base e que na parte superior se encontrava enroscado numa “vara”, constituída por um enorme tronco de sobreiro, suportado no outro extremo por um eixo na parede do edifício do lagar.

O produto que escorria da prensa incluía o azeite e o “azilabre” (uma mistura de água e dos outros resíduos da azeitona), ia parar à “tarefa”, que era uma espécie de pote profundo, composto por duas partes, a parte inferior para onde ia a água e a parte superior onde ficava o azeite, por ser substancialmente mais leve (ainda hoje se diz que a verdade é como o azeite, vem sempre ao de cima).

A perícia do mestre lagareiro consistia em abrir uma torneira na parte inferior da “tarefa”, de forma a mandar fora o azilabre e manter o azeite. Este trabalho exigia muita perícia, mexendo a tarefa com uma fina vara de madeira, para saber exactamente onde terminava o azilabre e começava o azeite. Por vezes aconteciam pequenos acidentes e lá ia uma parte do azeite para a ribeira.

Para além de fornecer a comida aos lagareiros e a lenha para as caldeiras que se destinavam a aquecer a água para caldear (a fim de obter mais azeite e após uma primeira prensagem, as ceiras eram retiradas e caldeadas com água quente, sendo de novo colocadas na prensa para serem espremidas de novo), também o trabalho dos lagareiros e o pagamento ao dono do lagar eram feitos do próprio azeite obtido, este último pagamento designava-se de “poia”. No lagar havia também uma talha para onde todos davam uma pequena quantia de azeite para o “santíssimo”, inicialmente destinado à iluminação da igreja do Colmeal e posterior com a evolução para as velas e luz eléctrica, destinado a ser vendido e a angariar fundos para a mesma igreja.

Aquela talha (pequeno pote), integra hoje o espaço museológico do Soito, por doação do actual proprietário do lagar, que funcionou até há cerca de 6 anos atrás.

O azeite era transportado para a aldeia em bilhas de lata ou em odres (recipiente feito em pele de cabra), sendo então guardado em potes de barro.

Para além do tempero, o azeite, a par da banha de porco e naturalmente do sal, era também usado para conservar os alimentos durante o ano inteiro (sobretudo o queijo e algumas partes do porco), uma vez que o Soito só teve luz eléctrica a partir de 1979.

 

3. O fabrico da farinha de milho e centeio




No perímetro do Soito havia vários moinhos para moer os cereais de várias aldeias, sendo 2 no Rio Ceira (moinho do Cabeceiro, exclusivo do Soito e do Boiço, que também era utilizado por pessoas de Carrimá, Malhada, Loural e Aldeia velha), 3 na Ribeira do Soito (Ribeiro, Pedrancha e Foz do Corgo) e ainda um dentro da aldeia que moía quando se abria o poço da rega (moinho do Curtinhal, que actualmente integra o património museológico da aldeia).



Estes moinhos, todos movidos a água, implicavam a manutenção de açudes e levadas para que a água chegasse em quantidade suficiente. Chegada junto ao moinho, a água era projectada a uma altitude adequada e declive adequados, através de uma caleira em madeira (feita por escavação com uma enchó num tronco de pinheiro), a fim de que o rodízio, situado na parte inferior do moinho, se movesse, fazendo assim girar a mó.



O moinho é composto por duas mós, uma móvel acoplada ao rodízio e uma fixa sobre a qual a primeira se move a fim de fazer a farinha, quanto maior for a distância entre as mós, mais grossa será a farinha e vice-versa. Esta distância ajusta-se através de dispositivo próprio chamado pau da cruz, conforme o tipo de cereal a moer e a espessura que se pretenda.



Para além das mós e do rodízio, o moinho tem ainda o reservatório onde se coloca o cereal, em forma de funil rectangular (moega), uma espécie de caleira por onde o cereal se dirige para o buraco central da mó móvel em direcção ao espaço entre as duas mós (a quelha), mediante a turbulência provocada por uma pequena roda de cortiça (cadelo) que vai saltitando sobre aquela mó.



A generalidade destes moinhos eram colectivos, com maior expressão dos que se situavam no rio que eram praticamente de todos os habitantes da aldeia (s), que conforme as posses e as necessidades, tinham direito a moer por um determinado número de horas por semana.



Sobretudo no Verão e nos anos de maior seca, apenas os moinhos do rio tinham água suficiente para moer, o que originava que estes não tivessem mãos a medir, trabalhando de forma contínua, pelo que todas as famílias tinham de aproveitar as horas a que tinham direito, mesmo que o seu período de utilização se iniciasse durante a noite, o que acontecia com frequência.



Assim, eram frequentes as deslocações ao moinho em noites escuras e por vezes frias, carregando, às costas, pesados sacos de cereal ou farinha, com uma lanterna de azeite na mão, a fim de alumiar os tortuosos e inclinados caminho. Era frequente a lanterna apagar-se devido ao vento, deixando as pessoas completamente às escuras e com dificuldade em a reacender de novo. Eram tempos difíceis, que apesar de tudo sabe bem recordar.



Por vezes acontecia que o moinho de “alodava”, eventualmente devido aos cereais não estarem suficientemente secos ou pelo inadequado ajustamento das mós, o que atrofiava a moagem e originava do desperdício dos respectivos cereais. Esta era uma situação que gerava o desespero das pessoas afectadas, quer pelos estragos causados, quer pelo facto de não terem obtido a farinha que necessitavam.



Era habitual as crianças a partir dos 6 anos acompanharem o pai ou a mãe, a fim de lhe fazer companhia nestas viagens nocturnas, segurando a lanterna e ajudando a dissipar os medos do desconhecido (lobisomens, bruxas e almas penadas que pairavam sobre aqueles caminhos escuros e íngremes).



Também aqui se verificava o espírito de entre ajuda das pessoas na aldeia, uma vez que era frequente as pessoas que iam buscar a farinha, findo o seu tempo de moagem, levarem o grão dos vizinhos que iriam utilizar as horas seguintes e vice-versa. Era também uma forma de minimizar o esforço de que todos beneficiavam.



Para além da farinha para a broa, de milho (em maior quantidade) e de centeio (em menor quantidade), fazia-se uma moagem específica a fim de obter os “carolos”, uma farinha de milho mais grossa, típica da zona, que eram cozida em água, a fim de fazer acompanhamento (de carne, sardinhas, etc) e da qual também se faziam uma espécie de papas doces.

António Duarte




2. Tradições do Milho


Como em todas as aldeias da nossa zona, o milho era o cereal predominante, cuja sementeira ocorria entre Março e Maio e a colheita entre Setembro e Outubro, sendo que estas datas estavam relacionadas com a natureza das terras, em que as de sequeiro eram, naturalmente, aquelas em que as sementeiras e as colheitas ocorriam mais cedo ( que produziam o milho temporão), ao passo que os lameiros, eram aquelas em que as sementeiras e colheitas corriam mais tarde (que produziam o milho mais serôdio).

Após a colheita, a retirada das “capas” que cobriam as espigas era feita na “escapelada”, que nalgumas zonas do país se designa de “desfolhada”, trabalho este que era efectuado de forma colectiva , à semelhança do que ocorria com a “debulha”. Num dia “escapelava-se” ou “debulhava-se” o milho de um vizinho, noutro dia o do outro e por aí fora.

Na ausência de máquinas (só mais tarde alguns agricultores mais abastados possuíam pequenas debulhadoras), a debulha tinha duas partes distintas: na primeira o milho era colocado num monte e “malhado” com paus duros de azinho e outras madeiras da zona, a fim de que por essa forma fossem extraídos a maior parte dos grãos. Este trabalho era sobretudo feito por homens. Após esta fase era necessário passar espiga a espiga a fim de retirar os grãos que não tinham sido extraídos com a “malhada”.

O trabalho colectivo custava menos e era mais animado, juntando novos e velhos, havia cantorias, contavam-se anedotas e histórias de namoriscos ou o desvendar de alguns segredos, por vezes inconvenientes.

Nas aldeias escondidas na serra, sem luz eléctrica e actividades de divertimento, estes momentos seriam sem dúvida dos mais desejados pelos mais jovens, para alguns encontros tolerados, uns cruzar de pernas ou mesmo uns beijos no escuro quando, por qualquer motivo se apagavam as ténues luzes de azeite ou petróleo, então utilizadas.

O aparecimento de espigas de milho de cor rara, entre o azul e o roxo, que na zona designamos de “xi-coração”, mas que noutras zonas é também designado de “milho-rei”, era também uma oportunidade para brincadeiras entre os participantes nas debulhas, muitas das vezes aproveitada para proporcionar a troca de beijos e outras carícias entre rapazes e raparigas.


Debulhado o milho, era necessário levantá-lo ao vento a fim de eliminar as impurezas, sendo posteriormente estendido, ao sol, durante vários dias, em mantas de farrapos e “toldos”, a fim de obter uma secagem adequada à conservação e aquisição da dureza própria para o processo de moagem.

Após a secagem, o milho era guardado em arcas de madeira até à colheita seguinte, de onde ia sendo retirado à medida das necessidades para o fabrico de farinha ou para a alimentação dos animais.

António Duarte


Tradições do Soito

A propósito das comemorações dos 80 do regionalismo goiense, que tiveram lugar em Janeiro de 2009, escrevi alguns textos sobre tradições da aldeia do Soito que, na sua maioria, correspondem ao que se passava nas restantes aldeias da Freguesia.

Não obstante os mesmos já terem sido publicados em 2009 no Blog da União Progressiva da Freguesia do Colmeal (http://upfc-colmeal-gois.blogspot.com), irei efectuar de nova a sua publicação neste BLOG, ao mesmo tempo que, logo que possível, penso escrever sobre o que ainda me lembro de outras tradições.

1. A gestão das águas comunitárias da aldeia

O Soito sempre foi uma terra abundante em água, porque é uma das aldeias mais baixas da Freguesia, aproveitando assim do rio e das ribeiras para regar as suas terras, algumas das quais designadas de lameiros pelo facto de entre o Inverno e a Primavera serem irrigadas de forma permanente, a fim de produzir a erva para os animais, cujo último corte era destinado ao feno (erva seca), guardada nos palheiros, para consumo sobretudo nos dias mais invernosos em que o gado não saía dos currais.

Apesar disso, as terras mais junto da aldeia, onde se cultivavam sobretudo as hortas, disputavam uma quantidade nem sempre abundante de água, que era / é captada na “ribeira”, no desembocar das águas do Ribeiro de Além e da Quinta das Águias. Aí havia 3 poços (actualmente em ruínas) que, após estarem cheios (uma a duas vezes ao dia, dependendo da quantidade de água), eram abertos, sendo a sua água transportada até ao Soito, por uma levada de cerca de 2 km (hoje substituída por um tubo).

A água destes poços, que demoravam cerca de 2 horas a serem esvaziados, uma vez chegada ao Soito pela dita levada (alguma perdia-se no caminho), era depositada num poço de terra e pedras de grande dimensão situado no cimo da aldeia, hoje substituído por um tanque de cimento.

A distribuição da água era feita segundo escritos antigos, ainda hoje existentes, com base na dimensão de cada um dos terrenos de cultivo que a ela tinham direito, mas como acontecia em muitas outras terras do país, originava por vezes algumas discórdias, dado que algumas pessoas menos conscientes abusavam da sua utilização esquecendo os direitos dos outros.

A fim de resolver as “guerras da água”, os antigos habitantes resolveram então colectivamente instituir a figura do “juiz da água”, que era um homem designado por todos os agricultores para controlar a utilização da água por cada uma das propriedades, de acordo com o tempo a que tinham direito.

Este juiz, que eram pago em géneros agrícolas pelos diversos proprietários, tinha como função abrir o poço da aldeia e encaminhar água pelas levadas em direcção às terras que naquele dia iria ser regadas, chegada a água ali, virava o “tornadoiro ” e controlava o tempo de rega, cortando a água em direcção a outro destino, quando este terminava, ainda que o terreno não tivesse sido todo regado. Era necessário cumprir a “lei” e o juiz era implacável.

Os seus instrumentos eram o relógio para controlar o tempo de rega e um pequeno sacho para levar a água para o percurso desejado e também para desobstruir as levadas e os rêgos.

O último juiz da água do Soito, que exerceu a sua função até cerca de 1970, foi o ti António da Neves, mais conhecido por ti António do Balcão (dado que a sua casa, à entrada da chamada “rua da carvalha”, tinha um pequeno balcão e um alpendre). Era natural de Aldeia Velha e casou no Soito e o seu sacho ( a sua ferramenta de juiz da água) é uma das peças que integram o acervo do “Espaço Museológico do Soito”.

António Duarte